Pandemia causa impactos na alfabetização de crianças
Pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada em junho deste ano, mostrou que aproximadamente 40% dos estudantes do ensino fundamental e médio não tiveram percepção de progresso na aprendizagem durante um ano de ensino remoto na pandemia
No Brasil, 11 milhões de pessoas são analfabetas.
São pessoas de 15 anos ou mais que, pelos critérios do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), não são capazes de ler e escrever nem ao menos
um bilhete simples.
Pelo Plano Nacional de Educação (PNE), Lei
13.005/2014, que estabelece o que deve ser feito para melhorar a educação no
país até 2024, desde o ensino infantil até a pós-graduação, o Brasil deve zerar
a taxa de analfabetismo até 2024.
No Dia Mundial da Alfabetização, celebrado hoje (8),
a Agência Brasil conversou com professores que trabalham com a alfabetização de
crianças sobre os impactos da pandemia na etapa de ensino e sobre a rotina
desses profissionais.
Sem
tempo para cansaço
O professor do terceiro ano do ensino fundamental da
Escola Classe Comunidade de Aprendizagem do Paranoá, no Distrito Federal,
Mateus Fernandes de Oliveira diz que ainda não conseguiu parar para sentir o
cansaço que todo o período de pandemia causou até aqui. Nos últimos 18 meses,
ele precisou lidar com diversas situações, incluindo famílias de estudantes com
fome. Foi preciso que a escola se organizasse para distribuir cestas básicas
nas casas dos alunos.
"A
gente estava falando de falta de alimentos em casa. Famílias passando por
necessidades. Não era possível cobrar de uma família que estava preocupada com
alimentação que desenvolvesse um processo de escolarização em um momento como
este. A gente entendeu que a escola pública, como parte do Estado, tem responsabilidade
social. O Estado deveria cuidar das necessidades básicas, mas não estava dando
conta. A escola teve que se mobilizar".
Enquanto a escola esteve fechada, o professor chegou
até mesmo a visitar os estudantes pessoalmente, levar para eles as atividades e
verificar como estavam. A maior parte dos alunos não tinha acesso à internet e
acabava não participando das aulas online. Agora a escola voltou em um modelo
híbrido, intercalando ensino presencial e ensino remoto.
Oliveira percebe que as desigualdades se acentuaram.
Aqueles alunos que vêm de um contexto familiar em que a leitura faz parte do
cotidiano, em que há livros e revistas em casa, chegam agora ao terceiro ano do
fundamental sabendo ler e escrever. Aqueles que moram em casas com pouca ou
nenhuma leitura, às vezes sem mães e pais alfabetizados, acabam tendo um
conhecimento aquém do esperado para crianças com 8 ou 9 anos de idade.
"Não
dá para considerar este ano como só este ano. É pensar este ano e o seguinte
como duas coisas contínuas, porque senão a gente se exaspera e atropela os
processos. Atropela o tempo de entender o que a gente sentiu e o que está
sentindo e de perceber que caminhos pode trilhar. A gente pode acabar até
gerando o contrário do que gostaria. Em princípio, é preciso ter calma e, ao
mesmo tempo, saber que não temos tempo a perder".
Trabalho
redobrado
Em Corumbá (MS), foi com cachorrinhas que a
professora da Escola Municipal Almirante Tamandaré, Sonia Bays, conquistou os
alunos e conseguiu medir o que eles haviam aprendido em um ano de pandemia. Ela
dá aula para o primeiro ano do ensino fundamental, estudantes de 6 anos, que
estão começando a ser alfabetizados. "Queria
fazer algo mais lúdico. Acredito que as crianças são penalizadas por estar
longe da escola. Criança em fase de alfabetização precisa da escola",
diz.
Diante das dificuldades de ensinar a distância e por
meio de tecnologias, ela gravou um vídeo apresentando os próprios animais de
estimação e pediu que os pais estimulassem os filhos a fazer o mesmo com seus
bichinhos. "Na fase da
alfabetização, a criança precisa de oralidade. Ela fala e depois transfere para
o papel. É preciso estimular essa espontaneidade, essa fala das crianças".
Ao pequeno grupo que estava sendo atendido
presencialmente em horários especiais na escola, ela pediu que desenhasse e, se
soubesse, escrevesse os nomes dos animais. Foi assim que avaliou o que os
alunos sabiam e aquilo em que tinham dificuldades. Com base nas atividades
desenvolvidas com as crianças, surgiu o trabalho Alfabetização e Infância em
Tempos de Pandemia, apresentado em agosto no 5º Congresso Brasileiro de
Alfabetização.
A maior parte dos alunos de Sonia está em situação
de vulnerabilidade. Não é raro que as famílias tenham apenas um celular com
acesso limitado à internet. A estratégia muitas vezes, durante mais de um ano
de pandemia, era mandar vídeos por whatsApp, para que os responsáveis baixassem
usando a internet do trabalho e, depois, mostrassem para as crianças.
No ano passado, ela chegou a conhecer os alunos pessoalmente,
antes do fechamento das escolas por causa da pandemia. A turma desse ano, no
entanto, era uma lista com 23 nomes e contatos. Sonia fez questão de entrar em
contato com cada um por ligação e conversar com alunos e famílias. A logística
não foi simples, alguns estudantes precisaram ir para uma área com wifi aberto,
para receber a videochamada.
A escola foi retomando aos poucos o ensino
presencial. Primeiro, apenas uma vez por semana para atender aos alunos que não
tinham acesso a aulas remotas. Agora, a escola voltou às aulas presenciais em
esquema de revezamento, com turmas reduzidas.
"Os
professores, cada um de uma série, selecionaram os conteúdos que seriam
prioritários, que seriam essenciais. Não vamos ter como dar conta de tudo.
Estamos focando em leitura e escrita", diz e
acrescenta: "Os alunos não perderam
o ano, eles ganharam a vida. Se antes já tínhamos déficit de aprendizagem,
agora também temos, ainda maior. Teremos que redobrar o trabalho para vencer
isso".
Da
sala para a tela
Depois de oito anos nas salas de aula no Rio de
Janeiro, o professor Ricardo Fernandes assumiu, em 2019, o cargo de assistente
de Gerência de Alfabetização e Anos Iniciais da Secretaria Municipal de
Educação. No ano passado, com a pandemia, Fernandes passou a gravar aulas e
podcasts para os estudantes da rede municipal, por meio da prefeitura, para
garantir a educação remota. Ele, de repente, passou a alcançar um público muito
maior.
"Acaba
que você, que está produzindo uma vídeoaula, você não vira só o professor de
uma turma. A sensação que dá é que você vira professor de muitas turmas. Essa
foi uma estratégia muito importante para muitas crianças que estavam em casa",
diz.
Foi preciso, segundo Fernandes, recriar, com
tecnologia, espaços alfabetizadores. Além de o formato ser um desafio, foi
preciso também repensar o conteúdo de alfabetização, incluindo as famílias. "Todas as vezes que a gente pensa um
material agora, a gente pensa que essa família vai assistir junto, vai ajudar
na mediação desse conteúdo. Então as aulas agora são pensadas na perspectiva
mais coletiva. Quem está escutando o que essa criança fala? Quais as perguntas
que essa criança pode fazer para essa pessoa? É esse processo de uma educação
coletiva que traz para a alfabetização um novo caráter".
O professor conta que, durante a pandemia, as trocas
entre os professores da rede de ensino ajudaram a desenvolver novas estratégias
para chegar aos alunos e também ajudaram os próprios profissionais a não se
sentirem isolados. Fernandes ressalta, no entanto, que mesmo com o esforço, há
estudantes que precisarão de mais atenção. "A
gente sabe que existe um público que historicamente está alijado do contexto de
alfabetização e de educação, e esse contexto foi intensificado com a pandemia".
Estudo encomendado ao Datafolha pela Fundação
Lemann, o Itaú Social e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
divulgado em junho deste ano, mostra que mais da metade (51%) das crianças em
processo de alfabetização na rede pública brasileira ficaram no mesmo estágio
de aprendizado, ou seja, não aprenderam nada de novo durante a pandemia. Entre
os estudantes brancos, 57% teriam aprendido coisas novas, segundo a percepção
dos responsáveis. Entre os estudantes negros, esse índice cai para 41%.
Como responsável pela produção de materiais para a
alfabetização, Fernandes diz que um dos objetivos é que os estudantes se sintam
representados. "Não se pode
alfabetizar sem olhar para a favela, sem olhar para o bairro desse aluno, sem
olhar para o ritmo desse aluno, sem entender que é um sujeito que aprende
quando está em casa, quando está em contato com outros sujeitos. Não se pode
negar os aspectos culturais da cidade", defende.
Unindo
forças
Para a presidente da União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação (Undime) no Paraná, Marcia Baldini, é necessária a união
de forças de gestores, Poder Público, professores e familiares para garantir o
ensino e a aprendizagem das crianças brasileiras. Marcia, que coordena o Grupo
de Trabalho sobre Alfabetização da Undime, diz que a pandemia causou um prejuízo
muito grande à alfabetização.
"É
necessário ter políticas públicas nesse sentido, voltar o olhar para isso,
porque se não tivermos nas nossas escolas um olhar focado em relação ao
professor alfabetizador, a formação continuada, condições de trabalho, a
conscientização das famílias para que esse aluno possa aprender, os prejuízos
serão imensuráveis nos anos seguintes na educação fundamental, no ensino médio
e até mesmo na educação superior, em que vamos formar os famosos analfabetos
funcionais".
Marcia explica que a alfabetização exige a mediação
do professor. Isso porque gestos, movimentos labiais e materiais didáticos têm
impacto na aprendizagem. Esses elementos acabam se perdendo no ensino remoto. "Os alunos que estão retornando [para o
ensino presencial] apresentam muitas dificuldades, há alunos que esqueceram até
mesmo como se escreve o nome". Os dados mostram muito claramente, nos
primeiros anos da educação infantil e do ensino fundamental, prejuízos sociais,
econômicos, educacionais, que vão se estender ao longo da vida.
Retomada
Neste semestre, as escolas estão, aos poucos, com o
avanço da vacinação no país, retomando as aulas presenciais, ainda que
mescladas ao ensino remoto, no chamado ensino híbrido. Será preciso ainda,
segundo a oficial de educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) no Brasil, Julia Ribeiro, localizar os estudantes que não conseguiram
assistir às aulas na pandemia.
"Fazer
busca ativa desses meninos e meninas que não tiveram condição de se manter
aprendendo durante a pandemia. Os dados apontam isso, a pandemia atingiu
meninos e meninas que já eram mais vulneráveis. Quem já estava fora da escola
ficou cada vez mais longe, e quem estava na escola, mas sem condições de aprender
em casa, acabou sendo excluído desse direito".
Pesquisa divulgada este ano pelo Unicef mostra que o
número de crianças e adolescentes sem acesso à educação no Brasil saltou de 1,1
milhão em 2019 para 5,1 milhões em 2020. Desses, 41% têm entre 6 e 10 anos,
faixa etária em que ocorre a alfabetização.
"A
alfabetização é fundamental para a manutenção desse menino ou menina na escola.
É nessa faixa etária que é criado maior vínculo, inclusive com a escola. Ciclos
de alfabetização que são incompletos podem acarretar reprovações e abandonos
escolares nas demais etapas, nas etapas subsequentes",
ressalta.
Para Júlia, sobretudo na pandemia, quando as
crianças tiveram aprendizagens diferentes, todas as etapas escolares devem se
comprometer a garantir o aprendizado dos estudantes, garantir que aprendam a
ler e escrever.
"A
gente precisa de uma corresponsabilização de todo o sistema educacional no
sentido de garantir que cada criança e adolescente, independentemente de idade,
tenha as oportunidades necessárias que lhe garantam alfabetização completa, que
lhe possibilite que esses meninos e meninas tenham maior liberdade, maior
autonomia, que estejam incluídos na sociedade, que tenham mais acesso a
oportunidades profissionais e pessoais, que tenham acesso a seus
direitos".
Ministério
da Educação
No dia 30 de junho deste ano, o MEC lançou o Sistema
Online de Recursos para a Alfabetização, apelidado de Sora. A plataforma foi
desenvolvida para apoiar professores e trabalhadores da educação no
planejamento e execução de atividades de ensino para alunos que estão
aprendendo a ler e escrever.
O sistema traz estratégias de ensino ou como o
conteúdo pode ser ensinado. Elenca também propostas de atividades a serem
aplicadas em salas de aula, ferramentas que são utilizadas na consolidação da
apreensão dos conteúdos.
A plataforma disponibiliza recursos adicionais
diversos que auxiliam os professores. Podem ser acessadas, por exemplo, imagens
que ajudam a fixar as letras do alfabeto. Será incluído também um módulo com
sugestões de avaliações para verificar a aprendizagem do conteúdo.