Só com luta de negros foi possível abolir escravidão, diz especialista
Para sociólogo, data mais relevante é 20 de novembro, e não 13 de maio.
O fim
da escravidão legalizada no Brasil foi um processo construído por pessoas
negras, um ponto que especialistas consideram fundamental ser lembrado no dia
13 de maio, data da abolição da escravidão.
“Ao
longo das últimas décadas, têm aumentado as percepções sobre a ação política
dos escravizados, inclusive o próprio 13 de maio”, enfatiza o psicólogo Márcio
Farias, que coordena a coleção Clóvis Moura na Editora Dandara.
O 13
de maio é alvo de disputas por ser uma data oficial usada como uma espécie de
“ação redentora de uma elite, dos setores dominantes, frente ao que foi o
horror da escravidão”, diz Farias. Segundo o pesquisador, por isso, os
movimentos negros precisaram contestar a celebração no sentido em que a
abolição estava sendo apresentada como uma benesse concedida pela monarquia à
população negra.
“Talvez
seja uma data das mais emblemáticas naquilo que são as disputas de projetos de
país colocados, de um lado, por setores das elites dominantes, classes
possuidoras de riquezas e poder, e por outro lado também reflete como os
setores da classe trabalhadora, ao longo do século 20, foram se posicionando
frente a essa data, como uma plataforma de disputa de projeto de sociedade”,
comenta.
O
historiador Rafael Domingos Oliveira, que faz parte do Núcleo de Estudos e
Pesquisas da Afro-América, destaca que a promulgação da Lei 3.353, em 13 de
maio de 1888, acontece em um contexto histórico amplo, que envolve séculos de
luta das pessoas escravizadas. “O percurso histórico até ela [Lei Áurea] foi
muito mais longo e, se quisermos ser rigorosos, começou com a primeira pessoa a
ser escravizada e que, certamente, tentou resistir de todas as formas à nova
condição a que estava sendo submetida. Desde então, foram muitas as estratégias
de resistência -- individual e coletiva – de que as populações escravizadas
lançaram mão para conquistar sua liberdade.”
Primeiro
movimento social
De
acordo com o historiador, a pressão para o fim da escravidão veio de diversas
formas, desde a resistência direta até os movimentos que lutavam a partir da
imprensa, da política e do Judiciário. “A contribuição dos movimentos
abolicionistas foi, sem dúvida, fundamental para isso. Outro fator foi a tensão
constante causada pela violência da escravidão, tensão geralmente resumida no
medo que a classe senhorial cultivava de que revoltas e rebeliões pudessem
eclodir a qualquer momento”, lembra.
“Há
uma pesquisa feita pela professora [da Universidade de São Paulo] Angela Alonso
que mostra que o primeiro movimento social brasileiro foi o movimento
abolicionista. Ela percorre, no livro dele, o período de 1868 a 1888 mostrando
as diferentes estratégias e táticas do movimento social abolicionista para que
se chegasse em 1888 com a abolição”, acrescenta o sociólogo e curador de
conhecimento na Inesplorato, Túlio Custódio.
No
entanto, em relação à luta contra a escravidão e pelos direitos da população
negra, o sociólogo considera mais importante o 20 de novembro, Dia da
Consciência Negra, data da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. “Nós
temos o 20 de novembro como uma data mais fundamental, porque é uma data que
conecta com a grande luta, ou com uma perspectiva mais ampla da luta contra a
escravidão, contra o racismo, contra a situação das pessoas negras em um
contexto colonial e racista do Brasil”, enfatiza.
Porém,
é preciso, segundo Custódio, lembrar que promulgação da lei que encerrou o
período escravista no país não foi uma iniciativa da princesa Isabel,
responsável pela assinatura do documento oficial, mas, sim uma luta de muitos
anos de figuras negras importantes, como José do Patrocínio, Luiz Gama e André
Rebouças.
Sem
direitos
Apesar
dos esforços dos abolicionistas, o processo de abolição, no entanto, acabou
promovendo a desigualdade racial no Brasil pelas décadas seguintes até os dias
atuais, diz Domingos Oliveira. “O projeto de redistribuição de terras,
defendido por André Rebouças e Joaquim Nabuco, que poderia perfeitamente ser entendido
hoje como reforma agrária, estaria associado à emancipação da população
escravizada. O projeto, como sabemos, nunca foi para a frente e, até hoje, o
Brasil é um dos únicos países de formação agroexportadora que nunca realizou a
reforma agrária”, exemplifica Oliveira sobre as propostas que chegaram a ser
discutidas à época.
A
forma como a abolição foi feita não garantiu, segundo Farias, dignidade e
direitos, muito menos reparação às pessoas que sofreram com a escravidão. “Esse
projeto foi o vitorioso. Um projeto em que as cidadanias foram mutiladas para
que uma nova forma de exploração do trabalho do ponto de vista formal se
instaurasse, mas mantendo formas arcaicas de relações sociais”, ressalta.
“É só
pensar na [Rua] 25 de Março”, exemplifica Farias, ao falar da região de
comércio popular no centro da capital paulista. “Você tem lá toda uma
tecnologia disponível para compra, consumo, mas as pessoas que vendem, em
geral, estão em condições de trabalho bem precárias. Em uma ponta, o mais alto
nível da produção, e em outra, as relações mais arcaicas de trabalho. Essa é
uma imagem que retrata quais são os reflexos do 13 de maio ainda hoje. Um
projeto que a relação de superexploração da força de trabalho está muito relacionada
com o racismo”, ressalta.
Mesmo
considerando o contexto adverso, o pesquisador destaca a capacidade de organização
dos movimentos negros que mantiveram a luta por direitos no século 20 e
continuam nestas primeiras décadas do 21. “A população negra, mesmo colocada em
posição de informalidade, perene de superexploração enquanto classe
trabalhadora pós-13 de maio, ela se organizou, se associou. Teve espaços de
associação que permitiram a ela não só se reconstituir como grupo social,
enquanto classe, mas, acima de tudo, reelaborar projetos”, acrescenta Farias.
Fonte e fotos: Agência Brasil